segunda-feira, junho 22, 2020

Anta de Vale da Laje – entre a Lei e a opinião


texto publicado nos jornais Cidade de Tomar e O Templário de 19 de junho.

Anta de Vale da Lage - foto Rádio Hertz
Um processo de construção próxima deste monumento megalítico, que é longo, recentemente mediático, com muita opinião confundida com factos e do qual, para ajudar a entender, se faz uma (muito) resumida cronologia:
A junho de 2013 dá entrada pedido de licenciamento do projeto. A partir daí decorre um normal conjunto de procedimentos e de trabalho técnico e de demais garantias administrativas nos termos da Lei.
Em setembro de 2015 é apresentada a declaração de assunção de compromisso de execução e manutenção das infraestruturas, após o qual é aprovado o projeto de arquitetura, condicionado a mais um conjunto de exigências determinadas por Lei.

Para que se entenda com clareza, a aprovação da arquitetura é o que para o promotor passa a constituir direito de construção daquele projeto, tudo o que é feito em seguida são (digo isto de forma muito simplista) pormenores de licenciamento, as chamadas “especialidades”.
Em junho de 2016 são entregues os projetos de especialidades, sujeitos a melhoria e correções.
Nesse mesmo mês, entra requerimento a solicitar pré-existência de edificação na parcela, que foi reprovado.
Em setembro de 2016 “eu, abaixo assinado”, passo a deter também o pelouro da gestão e planeamento do território, vulgarmente conhecimento como urbanismo (não interessa nada para o caso, mas serve de declaração de interesses).
No mês seguinte é dado despacho de deferimento final com vários condicionamentos entre os quais: acompanhamento arqueológico das ações de desmatação e movimentação de terras e outras de salvaguarda do “sítio arqueológico inventariado da Anta do Vale da Lage” que venham a ser estabelecidas pela Direção Geral do Património Cultural (DGPC); cumprimento das normas de saneamento básico estabelecidas no regulamento do Plano de Ordenamento da Albufeira do Castelo de Bode; promover a ligação das edificações às infraestruturas de abastecimento de águas em execução; e a limitação da vedação confinante com o monumento à plantação de vegetação (árvores e arbustos) de forma a diminuir o impacto visual.

Após estes condicionamentos impostos pelo município, a DGPC emite parecer em linha com as condições já estabelecidas e, assim, em outubro de 2018 é solicitado e posteriormente emitido alvará com as referidas condicionantes.
Em janeiro de 2019 a DGPC emite novo parecer em aditamento ao anterior, com requisitos em relação a acompanhamento e sondagens arqueológicas;
Em julho de 2019 o município promove uma das principais reuniões de acompanhamento de obra no local, com presença também da DGPC, o promotor e o diretor de fiscalização da obra, e em parte com a junta de freguesia local. Das várias questões colocadas, ficou definido novo levantamento topográfico do local.
No mesmo mês, é emitido novo parecer da DGPC favorável à tipologia de vedação a implementar no limite junto à anta.
Em agosto de 2019, e após ofício da DGPC a solicitar a suspensão parcial dos trabalhos por incumprimento de um dos condicionamentos impostos em parecer anterior, determino embargo parcial à obra para garantir respeito pelos limites definidos.
O município comunica ao Ministério Público eventual desrespeito do embargo.
Em seguida, nesse mesmo mês, o promotor apresenta alterações à obra com retificação da implantação da edificação de modo a cumprir o afastamento de 10 metros ao monumento. São apresentadas outras alterações que não foram aceites, nomeadamente por não cumprirem as distâncias impostas.

Em outubro de 2019, também a DGPC se pronuncia sobre violação de embargo, neste caso sobre eventual realização de um muro sem acompanhamento arqueológico.
Com avanços e recuos, e muita documentação em trânsito, em dezembro de 2019 a DGPC dá parecer favorável às ultimas alterações que haviam sido apresentadas pelo promotor em outubro, e assim aprovadas pelo município. Referem-se apenas a questões exteriores ao edifício, nomeadamente uma piscina.
Em final de fevereiro de 2020 é levantado o aditamento ao alvará, e como tal é notificada a Conservatória do Registo Predial para levantamento do embargo.
Paralelamente, subsistem dúvidas sobre a natureza pública ou privada do caminho vicinal, questão determinante para a imposição de várias das questões relativas ao distanciamento de qualquer edificação a uma via. Uma questão recorrente em vários locais e ao longo dos anos, o promotor alega que é privado, a junta que é público.
Também em paralelo, há questões ainda não totalmente esclarecidas sobre outro edifício alegadamente já existente no terreno. Quanto à permanência desse edifício no local existe parecer desfavorável da DGPC.
Ainda em paralelo, e após a denúncia ao Ministério Público do eventual desrespeito pelo embargo parcial, vão decorrendo as diligências do Tribunal.
Por outro lado, esta é seguramente a obra mais fiscalizada no concelho de Tomar, pelo menos de há muitos anos a esta parte. Fiscalização regular do município, da DGPC, da GNR, e como já vimos, das redes sociais locais e digitais.

Ora, esta é como já referi, uma muito curta súmula de todo o processo. Entenda-se que para a fazer foram precisas duas semanas de consultas aos imensos documentos que dele fazem parte. É na verdade composto por muitos subprocessos a que na gestão documental do município, agora digital, chamamos “casos”.
Fica, depois disto, e para não ser mais enfadonho, pouco espaço para dizer algo que não seja:
Opiniões, como em tudo há para todos os gostos. A obra é feia, é bonita, faz sentido, não faz, está perto da anta, não está… bom, as entidades públicas não podem tratar processos de licenciamento de obras particulares com opiniões. Estão obrigadas, desde logo os municípios, a cumprir e fazer cumprir a Lei.
Sublinho, eu também tenho a minha opinião sobre o projeto, mas nestas matérias as opiniões de nada valem.

A questão de base, conflitos de terceiros à parte, é da proximidade do novo edifício ao monumento. E sim, se ele estivesse classificado como “monumento nacional” (é a DGPC que pode atribuir essa classificação), poderia ser obrigatória a distância de 50 metros, e não a de 10 que impusemos. Mas o essencial é isto: o terreno tem legalmente capacidade construtiva, logo, não existia qualquer base legal para impedir o licenciamento da obra.
É verdade, não tendo qualquer efeito para este caso (relembro a data em que entrou o pedido de licenciamento), a câmara está a preparar processo de pedido de classificação (em conjunto com a Gruta do Caldeirão, na Pedreira, e o Centro Cultural da Levada). Mas muitos o podiam ter feito desde que a anta foi escavada nos anos 80: quem escavou, instituições académicas, as sucessivas câmaras, as sucessivas juntas de freguesia, a própria DGPC – bolas, pela lei, qualquer cidadão pode fazer proposta de classificação!

Relativizando, e como dizia em reportagem na SIC o arqueólogo responsável pela escavação, problemas em obra é natural existirem, e naturalmente referindo-se à proteção da anta nos condicionamentos impostos, a DGPC agiu corretamente.
Acrescento eu, o velho e o novo podem coexistir, haja bom senso.
É como toda a discussão de opiniões que sobre isto tem vindo a existir e que muito faz lembrar alguns extremismos de que a sociedade em geral está a sofrer: haja bom senso, e entenda-se que um município não tem bases legais para aprovar ou desaprovar questões urbanísticas em função do gosto de cada um.


Extras:
Quando, em 2014 após trabalhos de limpeza se iniciou trabalho de valorização da Anta, até aí desconhecida do grande público, desde logo com programação de visitas:

Um exemplo:

A reportagem da SIC sobre a questão que abordo:

Sem comentários: