domingo, outubro 10, 2010

Res Publica

(artigo publicado a 8 do presente no jornal Cidade de Tomar. Embora escrito há mais tempo.)


Com influência anterior da Grécia antiga, vem dos romanos a expressão que dá título a este texto. Quer dizer algo como “coisa pública” ou “coisa do povo” e anda normalmente de mãos dadas com outro termo muito importante: a Democracia.
Em Portugal, a Implantação da República cujo centenário comemoramos no próximo dia 5, resultou do golpe de estado organizado pelo Partido Republicano Português com forte influência e participação de outras forças progressistas como a Maçonaria ou a Carbonária, pondo assim fim ao sistema de Monarquia Constitucional então existente.
Além de razões ideológicas, várias eram as questões políticas e da governação que impeliram as vontades dos revolucionários e fizeram colapsar esse regime. A subjugação do país aos interesses coloniais britânicos (a célebre questão do “mapa cor de rosa”, que veio a dar origem ao poema A Portuguesa, depois usado em parte para o hino da República); os gastos elevados da família real, o poder da igreja, a instabilidade política e social com a sucessão de governos fracos e que viria a findar na breve ditadura de João Franco que durou quase até ao fim da monarquia.
A República apresentava-se então como o regime que seria capaz de voltar a dar a Portugal algum do prestígio há muito perdido e um caminho de progresso que até então fugia ao país. É dificilmente contestável para quem analise a história, o facto de que foram as últimas décadas da monarquia, a par com os mais recentes quase cinquenta anos do regime salazarista, aqueles que mais atrasaram o país e o afastaram da frente de desenvolvimento europeu.
A passagem da monarquia para a República marca uma mudança essencial na filosofia da existência do ser humano: a passagem da condição de súbdito de alguém, tendo esse alguém adquirido essa condição de soberano apenas por ter “nascido rei”, para a condição de cidadão igual aos demais perante o Estado, em direitos e deveres, em liberdades e garantias – a filosofia difundida com a revolução francesa, em que todos os homens nascem livres e iguais. É verdade que esse caminho não foi imediato, várias têm sido as conquistas ao longo dos anos, algumas só já nos fins do século 20: a igualdade de género, por exemplo nas questões laborais ou mesmo entre cônjuges; a universalidade do direito de voto, a laicização do Estado.
E esse é um caminho em permanente construção, tal como a Liberdade não pode ser nunca entendida como uma verdade adquirida, mas como uma conquista que permanentemente deve ser defendida. Especialmente no que toca aos direitos e garantias de grupos minoritários, sempre mais difíceis de transmitir à maioria os cidadãos e que a todo o momento vão sendo alargados. Basta lembrar por exemplo, que só recentemente todos os cidadãos independentemente da sua orientação sexual, passaram a ser iguais perante a Lei no que toca ao casamento. Ou que para ter direito ao divórcio, basta que um dos cônjuges o deseje – o que a mim sempre me pareceu evidente, mas para a Lei não era.
É por isso e mais que todos sabemos ou deveríamos saber, que nos nossos 100 anos de República nem todos foram verdadeiramente de Democracia, nem todos foram de progresso. Foram conturbados os primeiros anos do século 20 português, também influenciados pelo que pelo mundo se passou: as guerras mundiais; a grave crise económica e social de 1929 (a Grande Depressão), a maior até à que agora vivemos; como foram conturbados os primeiros anos do pós 25 de Abril, especialmente durante o PREC. E temos de recordar que metade do século republicano que agora comemoramos foram vividos numa espécie de ditadura – e digo “espécie” porque para se fazer uma avaliação justa não poderemos dizer que tudo foi mau, admitindo que ao menos nos primeiros anos da governação de Salazar houve aspectos positivos, na estabilização económica do país por exemplo.
A centenária República do nosso já quase milenar país, esteve assim longe de ser perfeita. Mas é verdade que muito se passou nestes 100 anos e devemos lembrá-lo. No acesso universal à educação, à saúde, aos direitos laborais, no direito à reforma, no direito ao ócio ou lazer, no acesso à cultura, na liberdade religiosa, na qualidade de vida em geral. Claro que poderá ter havido alguns exageros, a todo o momento é preciso criar equilíbrios no sistema, é difícil pensar em alguns direitos se não houver dinheiro para comer. O Estado somos todos.
Talvez por isso, talvez por nada, os pessimistas do costume e um certo negativismo português dirá: isto está é cada vez pior, ganhamos mal, trabalhamos muito, reformamo-nos tarde, etc. Mas qualquer análise isenta mostrará que não é assim, basta a qualquer um de nós olhar à volta e reflectir, pensar como viviam os nossos pais, os nossos avós. Como eram as suas casas e o que lá tinham, o que comiam, o que vestiam, o que sabiam do mundo; quantas crianças morriam à nascença, quantos morriam por doenças estúpidas, quantos morriam em guerras que não entendiam; qual era a esperança média de vida; como eram as suas profissões, quantas horas trabalhavam, o que faziam nos (poucos) tempos livres, e por aí fora.
Há evidentemente muito a fazer, como redescobrir o papel de Portugal no mundo. Abandonar esta posição de periferia em que sistematicamente nos colocamos – durante a ditadura “orgulhosamente sós” a querer ser grandes com as colónias esquecendo o resto do mundo; depois de 1974 a querer muito ser europeus e só para aí voltados.
Esquecemos tantas vezes as lições da história, por exemplo que só fomos minimamente “grandes” quando fomos um dos centros do mundo, quando no tempo áureo das descobertas éramos porto de chegadas e partidas. Só o movimento produz algo. O mesmo podemos aplicar a qualquer região, cidade, aldeia. Como a Tomar, que por várias razões perdeu a sua centralidade e chegou ao século 21 numa espécie de periferia onde as pessoas se deslocam como a um museu. Felizmente parecem começar a existir a vários níveis, ainda ténues é certo, mas alguns sinais de mudança. Ou ao menos a consciência da necessidade de mudar. E assim é também no país, que não quer deixar de ser europeu, mas que cada vez mais tenta ser uma porta da velha Europa para África e para a América brasileira, tirando partido deste grande espaço mundial que é o da Língua Portuguesa.
Por tanto mais, a República deve ser comemorada, estimulada. “E pur si mouve”, diria Galileu, “e no entanto ela move-se”. Assim é com a nossa sociedade, lentamente, umas vezes mais que outras, mas o progresso existe.
Será sempre preciso defender a República, a Democracia, a Liberdade. Por vezes de ameaças veladas, mascaradas, como os que querem transformar direitos que devem ser de todos, em regalias que variam consoante a conta bancária. Basta ver o que alguns agora propõem para alterações na nossa lei fundamental, a Constituição.
Ou como algumas tendências demagógicas baseadas em populismo boçal, que pretendem fazer esquecer coisas essenciais: em Democracia somos governados por representantes eleitos – não por técnicos, não por conselhos de administração, não por homens providenciais, não por regras de mercados desregulados.
A todo o momento, sublinho, deve cada um de nós, no seio das nossas comunidades, nos nossos locais de trabalho, estimular a República e a Democracia, e só assim manteremos vivos e actuantes os ideais de 5 de Outubro de 1910, os da Liberdade, da Igualdade, da Fraternidade, na demanda do timbre da Justiça e da Verdade, da Honra e do Progresso. E sonhando com o futuro, sempre, porque “sempre que o Homem sonha, o mundo pula e avança”.

Sem comentários: