Acordado – que é como quem diz, de novo abrindo os olhos, que dormir é outra coisa – despertei numa Lisboa cansada ou, ainda repousando de uma noite de folia, onde a luz matinal e ímpar do sol alfacinha, escorre densa pelos edifícios pombalinos.
Aqui e ali alguns fazem até render as últimas gotas de cerveja e como que ecoando os sons da noite, se ouve ainda um ou outro acorde de solitário guitarrista e alguns descompassados batuques.
A caminho do metro, lá estava no Chiado o aniversariante Pessoa, na sua sentada perpetuação de bronze, vigiando sereno os madrugadores e parcos turistas, a quem um dos seus heterónimos declamava mudos sonetos…
A véspera do dia de Santo António é noite obrigatória em Lisboa. Talvez a mais típica festa popular portuguesa, ela é hoje expressão não só de bairrismo, mas igualmente de multiculturalismo, e condensação do sentir e ser português, aqui multiplicado por todas as ruas e ruelas dos bairros históricos da capital.
Por todo o lado há barraquinhas improvisadas, ou simples bicas de imperial podem surgir ao virar da esquina, ou numa qualquer porta hoje especialmente aberta. A sardinha, rainha da festa, está cara e possivelmente devido aos bloqueios dos últimos dias, com duvidosa frescura e portanto de má cara; mas o vinho, a sangria, e especialmente a cerveja jorram sem parar e erguem-se em todo o par de mãos.
A par com o das sardinhas, os odores das febras e das entremeadas olvidam o dos manjericos, mas muitos outros há a invadir as narinas e a colar-se à roupa.
Aqui e ali, umas vezes mais eufórico, outras mais tímido, ouço um «Olá stôr!» dito por alguns dos meus discentes. A grande maioria dos meus alunos, para quem aliás, hoje fora o último dia de aulas, mora por ali, pelos muitos bairros da baixa lisboeta.
Os sons são ecléticos e diversos. Aos tradicionais fados e marchas juntam-se os ritmos brasileiros e em alguns pontos “mais jovens”, batidas recentes em imperceptíveis letras anglo-saxónicas. Há sítios onde andar se torna difícil tal o amontoado de gentes que circulam, circulam, como se circular fosse o imperativo da noite. O miradouro de Santa Luzia é um deles, assim como todas as ruas na zona da Sé ao Castelo e à Graça.
Cá em baixo, na Avenida, as marchas desfilam para os turistas e para os casais acompanhados de pequenos rebentos que procuram para esses maior segurança nestes espaços mais largos. A dar música aos refrões desafinados reconheço nos “cavalinhos” caras dos tempos em que também soprava essa arte. Tenho saudades do trombone.
Nos bairros mais a oeste, a agitação contínua. No Largo do Carmo, as barracas e bailarico estão entregues à trajada “estudantada” e mais acima, o Bairro Alto muda pouco a sua vida já sempre em festa no restante ano. De Santos a Alcântara e porque não à Ajuda, a alegria continua, mas para lá já não vou. A Bica contudo, é dos mais típicos e concorridos e por aqui fico mais um pouco, e no miradouro do Adamastor, ancoradouro maior da malta “cool” que se embala em fumos de outros cheiros, faz-se uma rave silenciosa, em que um grupo de gente ouvindo nos seus phones uma só batida, dança aos olhares distraídos, numa muda e louca coreografia. É, a tecnologia chegou aos santos populares.
E a noite continua, quente, assistida ao fundo pelo Tejo, acarinhada por um céu magnífico, e partir daí mais turva e sempre regada. Bom, como se diz noutras paragens, o que acontece em Lisboa, fica em Lisboa.
Em todo o caso, regressar a Tomar é quase sempre um bálsamo para todos os cansaços, e até cheguei a tempo de comprar no mercado as minhas primeiras cerejas do ano, que estão ali no frigorífico, agora já frescas e à minha espera…
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