"Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país cogitaram que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um segredo infalível para impedir a terra de tremer.
Tinham consequentemente aprisionado um biscainho, acusado de ter casado com a sua comadre, e dois portugueses que, ao comerem um frango, tinham deixado de lado o toucinho. Depois do jantar vieram amarrar o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado, o outro por ter escutado com ares de aprovação. Ambos foram conduzidos em separado para compartimentos de extrema friagem, nos quais o sol nunca incomodava ninguém. Oito dias passados, ambos foram vestidos de sambenitos e adornaram-lhes as cabeças com mitras de papel. A mitra e o sambenito de Cândido estavam pintados com chamas caídas e diabos sem caudas nem garras; mas os diabos de Pangloss tinham garras e caudas, e as chamas eram direitas. Sairam em procissão assim vestidos, ouvindo ao mesmo tempo um sermão muito patético, e acompanhado de uma bela música em falsete baixo. Cândido foi açoitado ao ritmo da música do cântico: o biscainho e os dois homens que não comiam toucinho foram queimados, e Pangloss foi enforcado, contrariamente ao que se esperava. Nesse dia a terra voltou a tremer com fragor espantoso."
em Cândido, de Voltaire. Um dos meus livros favoritos, aqui com especial dedicatória a António Rebelo.
Nem só de optimismo ou pessimismo vive o homem....
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