O Zé Povinho que ainda somos
publicado no jornal Cidade de Tomar de 28.01.05
Foi a 21 de Janeiro de 1905 que morreu Raphael Bordalo Pinheiro, pintor, escultor, caricaturista criador do célebre “Zé Povinhoâ€�. Foi um Homem bom, crÃtico, interveniente, preocupado com o seu mundo e a sociedade em que vivia, e que ilustrou como ninguém; o povo, o clero, a nobreza e os polÃticos de então. Algo muito parecido com a camuflada sociedade de classes que temos ainda.
E se alguns, ou se possÃvel a maioria, tentassem aprender com a história, veriam que os erros que cometem e as consequências que daà surgem não serão muito diferentes de há um século atrás. Mas também não admira, pois se nem sequer com a história mais recente de que muitos fazem parte, alguns parecem querer aprender.
Mas existirão afinal semelhanças entre a nossa sociedade e a sociedade de então, seremos ainda o mesmo “Zé Povinhoâ€�? Teremos evoluÃdo, seremos hoje melhores pessoas, viveremos hoje numa sociedade mais justa, mais activa, mais dinâmica? À parte as mudanças de forma, as mudanças na tecnologia, no acesso aos meios, e a facilidade de comunicação, penso que no que é mais importante, naquilo que marca um povo, a evolução das mentalidades individuais e colectiva, na forma de se ver e sentir a si mesmo e aos outros, na forma de estar perante a vida, naquilo que pensamos deixar de nós, acredito sinceramente que talvez estejamos piores.
Basta ver que o “Zéâ€� do Raphael era mais crÃtico, mais activo talvez, lutava por causas, lutava por uma evolução na sociedade, e a nossa de hoje, mesmo que mais instruÃda, mais perto do conhecimento, e supostamente mais livre, parece-me demasiado amorfa, demasiado afastada dos reais problemas, pouco preocupada com o seu futuro, ou o futuro além do umbigo de cada um. Os portugueses deixaram de acreditar, deixaram de se interessar, aceitam quase tudo como normal, e quando não gostam resignam-se, ou então revoltam-se pelas coisas mais supérfluas ou das formas mais inconsequentes.
O português só se irrita com árbitro, e com os outros nas filas de trânsito. É verdade que critica os polÃticos e as instituições, mas na maioria das vezes duma forma apenas frÃvola, dizendo que não se pode fazer nada, que é normal, ou o infeliz “são todos iguaisâ€�, uma espécie de “crÃtica por simpatiaâ€�, em que se digo mal deste, digo também daquele que deve ser idêntico.
O português é pessimista, acha sempre que tudo vai correr mal, e mesmo assim acredita no “desenrascanço� como melhor forma de preparar o que quer que seja. Não acreditamos em nós mesmos, nas nossas capacidades, e há tantas coisas de que nos podemos orgulhar!
Mas não, o português é alguém deslumbrado com tudo o que é novo, e em especial com tudo o que vem de fora. Não é de hoje, já era assim há 500 anos atrás. Por vezes isso é bom, mas nem sempre, veja-se a euforia que aconteceu com os telemóveis, somos o paÃs que mais cresceu em menos tempo, na aquisição desse agora “bem essencialâ€�, e somos hoje dos paÃses que percentualmente mais os possui. Não se diria que somos um paÃs em crise.
Passamos a vida a olhar ao espelho, procurando neste alguém que não existe e encontrando sempre quem lá não gostarÃamos de ver. E depois, raros são os que conseguem olhar além desse reflexo.
O português preocupa-se demasiado com a imagem, com tudo aquilo que contribui para o estatuto. Já falei dos telemóveis, mas também a roupa de marca, o carro, podemos muitas vezes não ter dinheiro, mas para essas coisas tem de chegar. E depois, vãs e ilusórias sensações de poder que se tem, e pelo qual se luta aqui e ali, quando verdadeiro é o poder de fazer algo, de deixar uma marca, de marcar uma mudança
E é preciso saber olhar para nós mesmos, como aqui em Tomar, somos talvez tudo isto um pouco mais que os outros, somos como diz uma amiga, alguém que não gosta de ser povo, somos falsos burgueses ostentando o que não temos, falsamente protegidos por tÃtulos que talvez nunca tenhamos tido realmente. E acreditem, no resto do distrito pelos menos, é assim mesmo que os outros nos vêem: os falsos burgueses de Tomar.
Como nota, aproveito para referir brevemente o artigo do sr. Alfredo José, neste mesmo jornal na passada semana, em que tenta tecer crÃticas à minha entrevista de 14 de Janeiro.
Não me merece grandes comentários, até porque, e sem arrogâncias, a leitura desse artigo, confirma a maioria daquilo que digo, é mesmo preciso alterar mentalidades, é mesmo preciso uma maior capacidade de visão, e de saber separar todo o acessório do efectivamente importante, algo nem sempre fácil nos dias de hoje. Quando alguém, em pleno século 21, tenta criticar outrem com um manual de geografia do século 19, que mais há a dizer?
E é preciso ainda que fique claro o seguinte: ao contrário do que quer fazer parecer, sobre a questão da renovação dos partidos polÃticos, eu não defendo elitistamente como alguns, que só os iluminados podem desempenhar certos cargos ou estar em certo locais, nem seria socialista se o fizesse. É preciso no entanto dizer que, tanto na sociedade actual, como em qualquer outra passada ou futura, a formação, a educação, são obviamente importantes e quem disser o contrário é tolo. É no entanto manifestamente evidente que experiência de vida e de trabalho, também são formação.
E é preciso dizer mais, dizer que quem tem de facto um diploma, quem tem formação, tem um comprometimento acrescido no empenho em fazer evoluir a sociedade, a humanidade, pois com mais informação, com mais conhecimento, com mais poderes, acresce a responsabilidade, o que infelizmente, seja na geração que de forma geral nos governa, ou na minha que com ela aprendeu, nem sempre, ou pouco, acontece.
E esse é sempre o meu maior desÃgnio, ajudar, incentivar a que mais pessoas se preocupem, mais pessoas critiquem construtivamente, mais pessoas sintam que podem e devem ter uma palavra a dizer sobre a condução do seu destino, e no de todos nós. É preciso que acreditemos que podemos mudar, e que nem todos são iguais. O nosso mundo já seria bem melhor se todos assim pensássemos.
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